Ensaio!: A efemeridade da vida em DayTripper


Tive o prazer de conhecer os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá na Comic Con Experience do ano passado, e posso dizer que tive também a sorte de encontrar um momento em que a fila para o stand dos dois no Artist’s Alley não existia. Essa sorte concedida a mim gerou uma conversa de um ou dois minutos com o Gabriel Bá, que me deixou (e ainda deixa) muito feliz no dia. Quando você gosta de quadrinhos, você tenta ao máximo expandir seus horizontes de leitura para que encontre algum tipo de arte ou roteiro que mais encaixe com o seu gosto, e isso leva a você a passar alguns momentos do seu dia lendo notícias ou críticas acerca de algumas obras que circulam por aí. Quando você é bem eclético, assim como eu sou, essa busca costuma durar algum tempo, e ouso dizer que ela chega a ser incessante.

Os nomes Fábio Moon e Gabriel Bá são conhecidos no mercado de quadrinhos (pasmem:) internacional já faz um tempinho, e há algum tempo pude ter noção do tipo de arte que eles faziam: a adaptação do romance de Milton Hatoum, Dois Irmãos foi a obra que me fez conhecer o trabalho dos dois. Isso, claro, sem ter lido ela haha. Não conseguia nunca achar uma promoção que me possibilitasse comprar o quadrinho e acabei deixando por isso mesmo.  Aí chegou o dia que eu citei no parágrafo acima. A CCXP. 

Eu tinha acabado de conversar com uma moça que cuidava das vendas dos quadrinhos dos dois e perguntei a ela se o Gabriel (só ele tava nesse momento, o Fábio eu conheci no dia seguinte) ficaria incomodado se eu perguntasse qual quadrinho seria bom para alguém que nunca leu nada dos dois começar. “Nossa, ele não ia não! Um monte de gente pergunta. Mas assim, a que ele e o Fábio sempre recomendam é essa daqui.” E ele me entregou um exemplar de Daytripper. Eu já queria comprar, e aquilo ali foi como um sinal verde para mim. Então fui para o lado para conseguir um autógrafo do Gabriel, e foi aí que eu contei o que tinha perguntado para o moça do lado. “É esse daí mesmo que a gente recomenda cara, porque é muito bom”, foi o que ele me disse. Olha, Gabriel, acho que você foi bem modesto.

A ideia de escrever esse texto surgiu por alguns fatores, e um deles foi por sábado (dia 2) ter sido dia de Iemanjá, e eu só descobri isso depois que a bia tinha me contado que havia acabado de ler o quadrinho (o que foi outro fator). Algumas coincidências são engraçadas demais para ser só o acaso.

Daytripper, antes de tudo, é um quadrinho nacional escrito pelos gêmeos de quem tanto falei acima, e conta a história de Brás de Oliva Domingos, um rapaz que tem uma vida bem simples, e trabalha como escritor de obituários no jornal da cidade. Ele é casado, filho de um escritor famoso no Brasil e tem um amigo que estudou com ele na faculdade que acabou trabalhando no mesmo jornal que ele. É uma vida bastante simples, não é? E assim como sua vida, o roteiro da história segue simples durante todos os capítulos do romance gráfico. Mas o ponto do post, dessa vez, não é fazer uma crítica pontual da obra, mas tentar trazer para vocês um pouco da reflexão que a história passa para gente que lê.

Aqui, a vida de Brás é contada como uma dança sensual e incessante nos desenhos do Fábio, que conseguem captar a ideia maravilhosa de fluidez que, pelo menos como eu enxerguei, é um modo de enxergar a Vida. Movimento, sempre mudança. Infinitas possibilidades que poderiam se modificar, ou até terminar com alguma decisão ou acontecimento que espreita no dia a dia como uma cobra espreita para dar o bote em alguma presa fácil e descuidada. Isso é viver. Daytripper é uma história, acima de tudo, sobre a vida. É uma realidade com delírios de ficção que tem como (an?)tagonista da história, a Morte. Em todos capítulos, somos apresentados a uma idade da vida de Brás, que é sempre o título do capítulo (à mera exceção do capítulo do sonho), e, nos tendo apresentado em qual momento da passagem de Brás na Terra estamos, ouvimos um pouco sobre o que acontecia nesse período. 

Sabemos como ele se apaixonou por uma Baiana no dia de Iemanjá, sabemos como ele passou a passar os dias escrevendo sobre a morte de pessoas que ele nem conhecia, sabemos como ele se tornou um escritor de sucesso no país e como conheceu depois o amor de sua vida. Também sabemos como ele morre eletrocutado enquanto soltava pipa, ou morre em uma batida de carro, mas também afogado enquanto levava as oferendas para Iemanjá. Parece uma loucura, não é? Admito que de início também achei que fosse, que tinha alguma página faltando entre um capítulo e outro, ou que talvez fosse só eu tentando me recuperar do choque do final do primeiro capítulo que acabou me deixando sem conseguir compreender o resto. Mas não, era exatamente assim que acontecia. Isso dele morrer ao final de cada capítulo, inclusive, me recordou muito o roteiro do filme Mr. Nobody, estrelado por Jared Leto (quem conhece o filme sabe do que estou falando, e quem não conhece, fica a recomendação), porque o que fui levado a entender é sobre como cada decisão que tomamos dentro do nosso cotidiano pode nos levar a um final diferente para cada pequena coisinha que nós mudamos. Será que, se eu não fizesse aquela viagem por impulso, as coisas não teriam sido diferentes? (Descanse em paz, Jorge).

Somos levados a acreditar que cada final de capítulo é, ao mesmo tempo, o final e o início de uma vida. Porque, afinal, é preciso morrer uma ou duas vezes antes de começar a viver de verdade.

Para os leitores de plantão, já ficou um pouco clara a semelhança entre o nosso protagonista e um certo outro burguês do século XIX que ficou famoso por narrar sua vida depois de morto, não é? Já aqui, Brás é um contraponto de Brás Cubas, enxergando as coisas com uma leveza e encarando a vida com um olhar diferente do pessimista que a personagem de Machado carregava. Aqui, a vida é sempre presente na história, sendo celebrada tanto no início quanto no final (é, mesmo na morte a gente encontra um motivo 
para celebrar a vida). E isso é uma coisa que a gente carrega dentro de nós mesmos.

A gente vai embora, como ouvi um certo senhor dizer ultimamente. Nossa vida é feita de tudo aquilo que a gente quer que seja feita. Carregamos conosco aquilo que decidimos. Quem disse que amanhã as coisas serão do mesmo jeito? Aquela briga que você teve com um familiar por algum motivo idiota vale realmente a pena só para provar um ponto? Depois que isso aqui que a gente vive hoje passa, são essas coisas que restam pros que ficaram. A leitura nos passa muito essa ideia, principalmente no capítulo de abertura, pela relação que Brás tem com seu pai. Uma coisa que me passou muito na cabeça durante a leitura foi um verso de um dos poemas mais famosos do Vinícius de Moraes: “[...] Que seja infinito enquanto dure”. Ter a capacidade de perceber que tudo passa e ainda sim ter a capacidade de tornar isso infinito é uma habilidade que poucos têm. E o que eu acho engraçado é que, na maioria dos capítulos, os momentos de calmaria, os momentos verdadeiramente infinitos, são aqueles que vêm antes da tempestade no final.

Tudo começa a fazer sentido quando entendemos o sonho pelo qual Brás passa. Acho que ali muita coisa se esclarece tanto pro leitor quanto pro personagem. Ali que a gente capta com uma perfeição estrondosa a fonte de fantasia no qual a realidade de Daytripper bebe. Tudo parece mesclado com os elementos de um sonho ruim que, quando próximo do final, faz a gente acordar. Só que o aprendizado de verdade está ali, escondido nos recantos escuros desse sonho.

Tudo começa a tomar um rumo mais diferente quando conhecemos o filho de Brás e, ao mesmo tempo, nos despedimos de seu pai. A perda sempre nos faz dar mais valor àquilo que temos, e às vezes damos esse valor tarde demais. O impacto que a perda de seu pai causa nele é tão enorme que qualquer um que já perdeu um ente querido consegue sentir no peito a dor que o quadrinho passa. Mas mesmo na morte, às vezes, há momentos para se lembrar da alegria. E é exatamente isso que a carta que o pai de Brás deixa para ele passa. Um entendimento da experiência de viver. Um entendimento sem tamanho.

Estamos aqui nesse mundo, e não temos um guia ou vidas passadas para simplesmente chamar no telefone e perguntar: “poxa Pedro de 1920, eu estava pensando se seria interessante comer essa pizza hoje, e como você fez exatamente isso, você pode me dizer se eu devia?”. Foi um exemplo bobo, mas estamos aqui em uma passagem única e não temos nada com que nos agarrar que não sejam as narrações de atos passados contados por nossos pais, avós e os livros de história. Mas o quê que adianta o momento que já passou? Tudo que nós decidimos, tudo é sempre uma primeira vez e sempre será uma única vez. E pode ser sempre uma última vez, dependendo da sua decisão, porque, afinal de contas: quem sabe o que nos aguarda ao virar a esquina?

Pedro Meireles

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